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Diário de um detento

O despertar

O despertador do telefone tocou ao lado da minha cama, ainda embriagado pelo sono demoro a perceber aquele chamado para mais um dia, com um pouco de dificuldade aperto o modo soneca, pronto! Acabei de ganhar mais cinco minutos de fuga da realidade que me esperava.

Mal fecho os olhos e o desgraçado toca novamente, aquela música que inicialmente coloquei para despertar com um pouco mais de ânimo agora faço associação ao sentimento ruim da obrigação.

Enfim ele me vence, o quarto ainda escuro recebe das frestas da janela um pouco de luz. Os pequenos raios claros me convidam a abrir a janela.

De lá consigo observar que o mundo já está funcionando a todo vapor, pessoas apressadas e alienadas correm, se apressam para não perder o transporte lotado para o trabalho.

Logo mais estarei lá, disputando um lugar minimamente confortável, se é que andar em pé dentro de um ônibus pode ser chamado de conforto.

Crianças seguem o rito para chegar à escola. Trânsito caótico já na esquina de casa é o que uma megalópole igual São Paulo oferece aos seus habitantes como bom dia.

Ilha de paz

O rito é sempre o mesmo… escovo os dentes, me troco, corro para preparar o café da manhã. Ahh… como sentia vontade de ficar um pouco mais em casa apreciando o café, sem pressa. O cheiro daquela bebida escura, aconchegante e tranquilizadora sempre me trouxe bons sentimentos.

É uma ilha de paz muito prazerosa, mas olhar o relógio me traz para a realidade e percebo que já deveria ter saído de casa.

Esses poucos minutos de paz e prazer apreciando meu café poderá me trazer enorme prejuízo pois o transporte público não espera aqueles que usam parte de seu tempo para lembrar que existe prazer em pequenos rituais do dia a dia.

A saga

O Metrô de São Paulo é o meio de transporte mais democrático que conheço, lá é possível ver o super pobre, o pobre, o que pensa que é classe média, a classe média e até alguns endieirados.

Todos usuários de metrô tem algo em comum: o movimento bovino ao caminhar nos corredores e escadas amontoadas de gente.

Cada um na sua correria, alheios aos outros e a si próprios. Apenas seguindo a manada em direção a suas obrigações.

Eu sinto que naquele ambiente perdemos um pouco de humanidade, somos próximos e ao mesmo tempo totalmente distantes, estranhos iguais.

Por muitos anos já não me enxergava fazendo parte daquele grupo. Isso me fazia mal, me sentia totalmente incomodado em fazer parte de tudo aquilo.

A obrigação do ponto

Chegar na empresa era a constatação de que curtir cinco minutos de paz tomando café me custaram vinte ao chegar na empresa. A vida nas grandes cidades o tempo “perdido” é cobrado a juros compostos.

Enfim, respiro fundo e mergulho no corredor repleto de baias e mesas, colegas de trabalho já estão concentrados na missão ao qual foram incumbidos. Temos metas e clientes super exigentes para atender.

Família de estranhos

Os nossos colegas de trabalho serão as pessoas que teremos como companhia pela maior parte da vida. Bem mais tempo que terá para sua criança, para seus pais e amigos próximos.

Neste sentido você será um abençoado se tiver bons colegas de trabalho, parceiros e que de alguma forma contribuem para o bem estar coletivo.

O mundo corporativo não é um ambiente muito adequado para isso. As metas, a busca e pressão por resultados e promoção cria um ambiente totalmente competitivo e de falsas amizades e paz camuflada.

Lá as amizades recebem o nome de Network. Muita gente irá sorrir para você e na sequência, quando você virar as costas irão torcer os olhos. Em algum momento você também fará isso.

A Doutrinação

As empresas no mundo atual tomaram lugar das religiões, com sua missão e propósito. Algumas possuem até mandamentos.  Elas criaram verdadeiras doutrinas para seus funcionários.

Quando eu entrei pela primeira vez em uma grande corporação percebi como era semelhante. Nós vestimos a camisa, falamos de forma que seja adequada ao negócio, vestimos, calçamos, temos horários totalmente controlados de forma que até nossa fome tem horário determinado para acontecer.

Nossa identidade pessoal se confunde com a identidade da empresa, e mesmo sem perceber, aos poucos eu comecei a falar nós para projetos que não eram meus.

Se você tiver um bom cargo e algumas regalias que outros não possuem, neste caso meu amigo… Você é o maior dos escravizados.

Alguém que recebe alguma vantagem, seja em dinheiro, status ou promessa futura faz de tudo para se manter na posição ou buscar uma melhor. Até mesmo se sujeita a humilhar colegas de trabalho, compactuar com injustiças e mesmo assim achar que tudo aquilo compensa no final.

Einstein já dizia

O tempo é relativo… quando acordei queria que os cinco minutos de soneca extra fossem trinta, já no escritório vejo colegas reclamando que o tempo não passa.

Aquela agonia que sempre observei nos meus amigos, a vontade que chegue o horário do almoço para “respirar”.

Depois pediam o final do expediente, na verdade o que sempre observei foi o pessoal pedindo para o dia acabar, a semana terminar, o final do mês chegar mais rápido pois é quando cai o salário, e finalmente pedem o final do ano com a esperança de que o próximo seja melhor.

Eu sempre apelidei essa galera de suicida a conta gotas.

De volta para o futuro

O retorno para casa não se difere da ida, só que agora as pessoas estão mais mal humoradas, com fome e cansadas. Cada um voltado para seu smartphone  e mundo individual, seguem alheios a realidade.

É frequente ver algumas brigas e discussões entre passageiros no metrô e ônibus, No entanto, nada disso mais surpreende, não sensibiliza ninguém. Como disse, perdemos humanidade.

O que mais querem é chegar em casa, tomar banho, comer e dormir… amanhã começa tudo de novo.

Você lendo isso deve estar pensando que estou depressivo, mas na verdade só estou fazendo um pequeno exercício de memória para não esquecer a realidade que me submetia todos os dias por mais de vinte anos da minha vida.

Obviamente muitas pessoas encontram felicidade nessa rotina, muitas delas também vão fechar os olhos para os problemas e agradecer, afinal de contas, ter um emprego em um país com conta carência como o nosso é uma dádiva.

Para mim, não… eu me sentia um detento aprisionado em meio da podridão visceral da sociedade carregada de vícios e desejos consumistas.

Cegos por seus anseios previamente criados e impostos por nossa cultura. Cada dia era uma forma de pagar sentença, meus investimentos nada mais eram que uma forma de cavar um túnel, que aos poucos, me deixavam cada dia mais próximo da liberdade.

Imagem por Marko Lovric –  Pixabay

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